Recomendo a todos nossos seguidores esta
esclarecedora entrevista da prof.ª Camila Caldeira Nunes a respeito do PPC.
Camila Caldeira Nunes: “Não há como falar em
pacificação e humanização sem falar na garantia de direitos civis, sociais e
políticos para ampla parcela da sociedade que permanece alijada do processo de
desenvolvimento econômico e social brasileiro”.
Expositora da primeira edição do Tertúlias
Criminológicas sobre crime, prevenção e violência, Camila Caldeira Nunes é
Mestre (2005) e Doutora (2011) em Sociologia pela Universidade de São Paulo
(USP), Professora do Bacharelado em Políticas Públicas da Universidade Federal
do ABC (UFABC), pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP)
e colaboradora do Observatório de Segurança Pública da Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
Em entrevista ao Instituto Avante Brasil, Camila
conta detalhes da experiência durante sua pesquisa de Doutorado sobre a
expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema
carcerário paulista, desenvolvida entre 2007 e 2011. Durante o trabalho de
campo, ela entrevistou presos de três unidades prisionais do interior de São
Paulo e teve contato direto com a rotina de integrantes do Comando. Nunes foi
capaz de identificar características estruturais e ideológicas da organização
criminosa que, segundo ela, controla cerca de 90% das unidades prisionais
paulistas. Nesta entrevista, Camila fala sobre o surgimento, a expansão e o
reflexo da ação do PCC dentro e fora das cadeias, assim como os impasses e
alternativas para a pacificação e humanização do sistema carcerário brasileiro.
Instituto Avante Brasil (IAB) – Em que contexto se
inseriu o surgimento do PCC?
Camila Nunes - O PCC surge em 1993, num contexto de inflexão das
medidas democratizantes no campo da segurança pública que marcaram a primeira
metade da década de 1980. No início dos anos 1990 assistimos a uma violenta
reação conservadora expressa no aumento exponencial da letalidade policial e
dos episódios de motins e rebeliões com desfechos violentos dentro do sistema
prisional, que resultavam num elevado número de mortos. O Massacre do Carandiru
em 1992 é o ápice desta política e não por acaso a criação do PCC ocorre 1 ano
depois.
IAB – Quando a existência do Comando foi assumida
oficialmente pelo Estado e qual foi a sua reação?
Camila Nunes – O governo de São Paulo só admitiu a existência do
PCC em 2001, no episódio que ficou conhecido como a megarrebelião de 2001, em
que 29 unidades prisionais de São Paulo se rebelaram simultaneamente, sob as
coordenadas das lideranças do PCC. Para tentar demonstrar poder de reação, o
governo de São Paulo criou o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), através de
um decreto estadual. O RDD, criado para desarticular o PCC, nunca logrou esse
objetivo. Antes, ele se constitui como elemento de balizamento das acomodações
da relação entre o PCC e o poder público.
IAB – Fale um pouco sobre a sua experiência durante
o trabalho de pesquisa nas unidades prisionais.
Camila Nunes – Realizei pesquisa de campo em três unidades
prisionais de São Paulo, todas no interior do Estado. Duas eram controladas
pelo PCC e uma era uma unidade prisional de “seguro”, isto é, para onde são
transferidos os presos ameaçados de morte nas outras instituições. Fiz
entrevistas com presos enquadrados em perfis diversos, como: integrantes do PCC
(chamados de irmãos); não integrantes do PCC (companheiros); excluídos do PCC;
ameaçados de morte pelo PCC; presos mais velhos no sistema prisional e também
os mais novos. Cada entrevista tinha uma duração de 2 a 6 horas, e abordava
toda a trajetória criminal e prisional do indivíduo, assim como o cotidiano
dentro da instituição. Além das entrevistas com o preso, foi muito importante
para a pesquisa a “vivência” dentro da instituição, na medida em que eu
permanecia lá o dia inteiro, de forma que, mesmo quando não estava realizando
entrevistas, esta conversando com funcionários ou diretores, ou mesmo com
presos e acompanhando um pouco o dia-a-dia de uma unidade prisional.
IAB – O que mais lhe surpreendeu durante a visita
às unidades prisionais? Você se sentiu ameaçada em algum momento?
Camila Nunes – Não, nunca ouve qualquer tipo de ameaça. Se há
alguma coisa que me surpreendeu foram mudanças provocadas pela presença do PCC,
tais como: a ausência de objetos cortantes em posse dos presos, como estiletes
e facas. Tais objetos sempre foram importantes meios de autodefesa para o preso
e, nas unidades prisionais controladas pelo PCC, sua posse foi proibida pela
facção. Outra coisa: no pátio, durante o horário do banho de sol dos presos,
funcionários, diretores ou qualquer visitante externo não passam por este
local, que é reservado absolutamente à população carcerária, um espaço
exclusivo dos presos nestes horários. Nas minhas experiências anteriores
(durante pesquisa de mestrado em 2003/2004 e trabalho voluntário em 2001, na
Casa de Detenção) não havia essa separação radical e absoluta, e havia um
trânsito regular pelo pátio durante o banho de sol dos presos.
IAB – Como o PCC é sistematizado? Qual é a sua
estrutura e poder de controle sobre os membros?
Camila Nunes – Há um processo de filiação, chamado de batismo,
onde o novo integrante deve jurar fidelidade ao PCC. Para ser batizado, é
necessária a indicação de alguém que já faça parte do Comando, que será o
padrinho do novo integrante. Há uma forma de se conduzir, um código comportamental
e uma “ética” própria que, espera-se, seja seguida pelos seus integrantes. Caso
haja transgressão a essas “normas”, há a cobrança por parte dos outros “irmãos”
e, dependendo da sua gravidade, a punição que pode ser a expulsão da
organização e, em casos extremos, a execução do indivíduo.
IAB – Como são identificados os integrantes do PCC
nas cadeias? Eles recebem tratamento especial?
Camila Nunes - Diretores, funcionários e presos sabem identificar
os “irmãos” dentro da cadeia. Não há tratamento especial, mas no dia-a-dia na
cadeia eles se diferenciam pelas “reuniões” mais constantes entre eles; ou
quando convocam toda a população carcerária da unidade prisional para reuniões
ou “informes” do Comando; são eles que estão a frente destes encontros. São
eles que organizam os eventos festivos ou cotidianos da prisão e que regulam os
conflitos ali existentes, envolvendo os presos entre si ou presos com os
funcionários.
IAB – O PCC realmente manda nas unidades prisionais
de São Paulo? Qual a dimensão do poder do Comando e o reflexo da sua ação fora
das cadeias?
Camila Nunes – O PCC exerce um controle em cerca de 90% das
unidades prisionais. Esse controle significa a mediação e regulação das
relações sociais entre os presos e entre esses e os funcionários das prisões e,
ainda, das atividades comerciais (ilícitas) que ocorrem na cadeia, sobretudo o
comércio de cigarros e entorpecentes.
Fora das cadeias, várias pesquisas têm apontado a
presença importante do PCC em muitos bairros periféricos da cidade de São
Paulo, região metropolitana e interior. A forma como se dá esta presença está
ligada à hegemonia no cenário criminal e, também, através da intermediação de
conflitos.
IAB – O que mantém o funcionamento e estrutura do
PCC? Quais são os “negócios” ilícitos da organização criminosa? Eles estão
ricos?
Camila Nunes - O tráfico de drogas parece ser a principal
atividade comercial do PCC. Mas, também, há a atuação direta (através de seus
integrantes) ou indireta (pelo aluguel de armas) em outras atividades como
roubo a bancos, carros-fortes, joalherias etc. Em relação aos recursos
financeiros em posse do PCC, não há informações concretas a respeito. Pelo
menos eu não tenho esse conhecimento. Talvez o Ministério Público tenha alguma
informação concreta a respeito.
IAB – O que mudou com a criação, em 2001, do Regime
Disciplinar Diferenciado (RDD)? Qual a sua avaliação sobre a efetividade da
medida? Ela realmente enfraqueceu a ação do PCC?
Camila Nunes - Não, na minha opinião o RDD não enfraqueceu o PCC,
tanto que, apesar de sua criação em 2001, em 2006 o PCC demonstrou capacidade
de organização e de articulação jamais vista, dentro e fora da prisão. Na minha
concepção, o RDD produz dois efeitos na dinâmica prisional: Produz um efeito
simbólico, ao conferir prestigio ao preso que por ele passa e permanece
“incólume” física e psicologicamente diante de um regime tão duro, e até mesmo
perverso como ele é. E, mais importante, produz um efeito prático, ao se
constituir como elemento de um processo de acomodações tácitas entre o Estado e
o PCC, o que produz uma estabilidade sem precedentes no sistema prisional
paulista.
IAB – De acordo com dados do DATASUS (Departamento
de Informação do SUS – Ministério da Saúde), houve diminuição de 58,5% no
número absoluto de homicídios em São Paulo entre 1998 e 2010. Em seu ponto de
vista, essa redução pode ser atribuída à atuação do PCC?
Camila Nunes - Ao alcançar hegemonia no universo criminal
paulista, o PCC teve êxito em se constituir como instância central de regulação
e mediação de conflitos, dentro e fora das prisões. Isso teve um impacto
importante na redução dos homicídios no estado, sobretudo nos homicídios
vinculados as disputas envolvendo o comércio de drogas e outras atividades
ilícitas. Hoje, para ficarmos apenas na realidade interna às prisões de São
Paulo, nenhum preso resolve seus problemas individualmente e da forma como
considerar adequada. A resolução do conflito passa, necessariamente, pela
mediação do PCC, sendo que a solução violenta será a última opção, embora ela
esteja sempre presente.
IAB – A mídia exerce um grande poder de influência
no que diz respeito à veiculação de fatos que espelham a força da ação de
grupos como o PCC. Em que sentido ela poderia contribuir no processo de combate
à cultura de dominação do terror?
Camila Nunes – Acho que grande parte da mídia não contribui em
absolutamente para a construção de uma cultura democrática, de respeito aos
direitos. Ao contrário, incita o ódio, a violência e legitima formas de
violência como a violência policial e outras formas privadas de resolução de
conflitos, como os linchamentos, por exemplo. Sua contribuição poderia começar
pela transparência das informações, pela seriedade da informação e do debate,
ao invés de optar pelo sensacionalismo barato.
IAB – Como o Estado e a sociedade brasileira podem
reagir a esse contexto? Quais são os impasses e alternativas para a pacificação
e humanização do sistema carcerário brasileiro?
Camila Nunes - Não há como falar em pacificação e humanização sem
falar na garantia de direitos civis, sociais e políticos para ampla parcela da
sociedade que permanece alijada do processo de desenvolvimento econômico e
social brasileiro. Fala-se muito em desigualdade social, mas penso que a forma
de desigualdade que mais afeta de forma perversa a população pobre brasileira é
a desigualdade no acesso aos direitos.
Mas, de uma forma geral, hoje há uma política que
está na contramão disso tudo, ao promover a segregação, o isolamento e, muitas vezes,
o extermínio dos jovens pobres da periferia de muitas grandes cidades
brasileiras. A vida do pobre no Brasil não tem valor algum, e isso é
corroborado por essa enorme parcela da imprensa e, claro, da própria sociedade
brasileira. Enquanto perdurar esse estado de coisas, é hipocrisia falar em
democratização, humanização ou pacificação.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário